Sempre gostei de escrever. Os circuitos pontuados no meu caminho sempre se fizeram pela escrita. Lembro de quando criança gostava de registrar as festas, os bailes num papel como se estivesse escrevendo uma coluna social. Tudo sempre foi engavetado e, algumas vezes, rasgado em pedacinhos que saíam voando fora do meu caminho. Escrevia pra me salvar e me acolher. A tristeza sempre roubando a cena dos momentos alegres. Como só me fosse permitido rabiscar e desenhar as perdas, a fragilidade, a incompreensão da vida. Hoje não. Hoje consigo perceber que todas as minhasandanças na vida são histórias que podem e devem ser contadas.
A fase de paixão por Caetano Veloso a partir dos festivais e do movimento Tropicália foi muito intensa. Ainda me vejo atravessando o jardim São João em Niterói entrando numa pequena loja de discos e comprando aquele vinil (Tropicália) como se fosse uma jóia, uma aquisição preciosa. Saí da loja atracada com ele, num andar firme, rico, poderoso, dona de mim. Aquilo era ser feliz. Chegar em casa, sentar e só ouvir. Ouvir e me arrepiar. Decorar as letras, absorver as melodias... Eu, achando Caetano o homem mais lindo do mundo. O sorriso... Ah, como gosto de sorrisos. Acho que há certas pessoas que não precisam de mais nada a não ser o próprio sorriso. Caetano era assim. Só precisava estar vestido de sorriso. Achava suas roupas lindas, ousadas, a cara de tudo o que eu queria ser... Meus amigos achavam estranha essa paixão. Alguns até desaprovavam. Mas em relação a música ninguém nunca conseguiu me desviar da minha sensibilidade genuína, minha, muito minha.
Assistir um show do Caetano era sempre um êxtase. Uma vez entrei no camarim do Thereza Rachel, falei com ele, entreguei uma música que havia feito e disse: “Se não gostar pode destruir.” Ao que ele me respondeu naquela voz mansa: “Não sei não. Eu não sou de destruir as coisas não.” Essa fala ficou martelando na minha cabeça e gerou um trecho de uma canção que compus.
Quando estava grávida do meu primeiro filho Alexandre, que por sinal é um excelente músico, entrei correndo assim que as portas do teatro se abriram para o show. Tudo isso pra sentar na primeira fila. Esse show assisti duas vezes. Na segunda vez fui com Paulinho (meu amigo até hoje) e nesse dia teve participação especial de Chico Buarque. Tirei muitas fotos e ao final do show eu e Paulinho subimos no palco, pegamos o copo com um restinho de uísque do Chico, bebemos, guardamos a relíquia (que tenho até hoje) e invadimos o camarim. Falamos com Chico, Miúcha, Caetano, pegamos autógrafo e, quando já estávamos saindo, Nisso, uma louca que andava com a gente lascou um selinho no Caetano. Ele foi pego de surpresa e ficou sem ação. Saí de lá rindo, mas no fundo com muita inveja da louca, de não ter feito a mesma coisa. Hoje me lembro disso tudo com muito orgulho por ter podido viver o brilho dessa época. Uma época que, de certa forma, ainda faz parte do meu jeito, do meu andar, do meu dizer... Uma época. Caetânica. Simplesmente Caetânica...
sábado, 26 de junho de 2010
Meu piano, meus amigos...
Às vezes tenho a sensação de que meus amigos são teclas de marfim de um piano que me oferece a possibilidade das mais variadas harmonias. Cada um tem seu som e timbre especiais. Meus ouvidos e minha alma se deixam embalar por acordes suaves. Algumas vezes estremeço com o reconhecimento de canções que andavam adormecidas em mim. Outras vezes viajo em sons dissonantes, estrangeiros e descubro rachaduras em compartimentos descuidados e abandonados. Certos fraseados me deliciam no descontrole das gargalhadas. Viro criança e saio dançando com o vento e o sol. Silencio meus barulhos internos pra estar inteira com o meu piano. Predadores já tentaram roubar algum marfim. Isso doeu muito na minha alma. Com algum trabalho artesanal, delicado, sutil, consegui tecer o talento de reparar tecla por tecla. E resolvi usar uma chave mágica que tranca e destranca quando meu desejo assim o quer. Meus dedos passeiam num bailado singular. Meus amigos criam bemóis, sustenidos e revelam sentidos que legitimam a minha música. Adoro meu piano. Adoro meus amigos.
Finalmente fui iniciada na construção de haicai. Conversando com meu amigo poeta Cecchetti mostrei curiosidade e comecei a experimentar. Arrisquei e já consegui produzir alguma coisa. Haicai é um jeito poético e conciso de se expressar. De origem japonesa chegou ao Brasil no início do século 20 e é distribuído em três versos de 5, 7, e 5 sílabas formando assim um terceto. É como um poema fotografia. Andei praticando e como tenho sido aprovada pelo mestre Cecchetti, resolvi postar. Aí vão meus primeiros haicais:
Tenho marcado encontros com a vida e não consigo chegar. Parece que existe um atraso inerente ou aderente à minha pele, à minha alma estabelecendo desculpas e descasos com essa questão. Fico estarrecida e muda diante de tons dissonantes que sempre rondaram todos os meus ouvidos. Sim, todos os meus ouvidos. Tenho vários órgãos para cada sentido. E vários sentidos para cada órgão. As esquinas do meu corpo estremecem a cada nitidez desses sentidos. Nesses momentos vejo que não estou só: me habitam tantos seres e eu teimo em me simplificar. Não sou simples nem abstrata. Sou um caos, a desorganização, sou toda manchada de cores e brancos e pretos e cinzas. Sou condenada a não chegar perto desse vendaval. Parece que me arrasto pelas frestas mal iluminadas do meu avesso e não consigo sair do lugar. Preciso de passos mais largos ao invés de dar voltas sobre mim mesma, na mesmice, na repetição, na invalidez da alma. Torço e retorço meu coração e continuo com o sangue enlatado sem jorrar pela vida...
Estou me sentindo um ponto que nem é ponto porque não significa, não consegue significar nem um ponto qualquer nessa lacuna, nesse vazio, nesse sei lá o quê... Preciso encontrar a vida. Urgentemente!
Para Marcos Comaru (meu primeiro professor de Psicanálise) e Denise Blanc ( minha psicanalista) que me possibilitaram continuar fotografando significados nas entrelinhas da vida.
Era um rapaz simples, despojado de vaidades, desses que a gente vê na rua e identifica como vendedor de enciclopédia ou crente fervoroso. Seu nome tão simples quanto seu jeito de ser. de ir e vir: Inácio.
Não tinha muitos amigos. A não ser os colegas de trabalho da loja de tecidos na Rua da Alfândega. Não passavam de meros colegas, visto que os programas de fim de semana nunca se encaixavam nos seus desejos. A turma já começava a se reunir sábado após o expediente no pagode da esquina regado a churrasquinho e muita cerveja. Inácio não bebia e a única multidão que gostava era a da missa.
Naquele dia, quase véspera de carnaval, ele foi entregar uma encomenda em Ipanema e acabou entrando na igreja pra assistir á missa. Fervoroso que era passou a celebração inteira ajoelhado e tomado por muita emoção. Comungou, cantou todos os hinos e saiu dali de alma lavada e pura.
Ao botar os pés do lado de fora Inácio foi tomado por uma grande surppresa. Deu de cara com a Banda de Ipanema com todas as suas cores e loucuras possíveis. Isabelita dos Patins deslizava coloridamente de um lado pro outro, enquanto purpurinas e paetês subiam aos céus levadas pelo movimento energético daquele grupo.
Inácio, paralisado, não sabia se entrava ou saía. Nessa indecisão foi tomado por um arrepio frio que lhe subia pelos pés, pelas pernas, ganhando força nas genitais e subindo como um vulcão pelo peito.
Inácio explodiu. Arrancou a camisa, abriu o cinto, tirou as calças, amarrou a camisa na cabeça, jogou os sapatos e as meias para o alto e saiu dançando feito louco no meio daquela gente...
Dançou, rebolou, entrou em êxtase, gritou, suou, extravasou...
Uma chuva de verão começou a cair. Inácio se jogou no chão, abriu os braços e deixou que aquela chuva perpassasse sua alma até o gozo da morte, da vida... Inácio voou.
Nunca fui chegada a copa. Nem a cozinha. Na verdade sempre fui chegada aos sons, às letras , às palavras, ao indizível. Estamos vivendo um tempo de copa do mundo numa sofreguidão absoluta. Pessoas que são certinhas o ano inteiro se vestem de verde, amarelo, paetês, colares, chapéus absurdamente engraçados... Gritam, tocam cornetas, reunem-se em bares numa histeria coletiva e focam naquilo que é o que mais importante no momento: futebol. Eu também assisti ao jogo de hoje mas antes disso fui ao mercado comprei cerveja, pipoca, batatas chips e criei um ritual pra colocar meu personagem em cena. Gritei, briguei, ri, engasguei... Com muita cerveja. Porque testemunhar esse espetáculo de cara limpa, não dá. Sinto muito. Não dá. Até domingo.
Ela conta muitas piadas. Morre de rir das histórias picantes que lhe contam e reclama um pouco da falta de memória para um desejado repertório maior de casos pra contar. Sua postura diante da vida é digna, inteira, elegante e, sobretudo, verdadeira.
Critica as pessoas que atribuem a Deus os dissabores da vida. Revolta-se com aquelas que esperam que a divina providência resolva seus problemas existenciais, financeiros, amorosos. Sua capacidade de raciocínio matemático é de dar inveja. Lê avidamente, livros, revistas, matérias científicas e expressa com muita clareza para os amigos suas idéias. Fala do passado com absoluta certeza de ter dado os passos certos para a construção do presente e futuro. Tem os pés no chão para perceber as dificuldades do dia a dia. Tem a alma leve para perceber os pequenos milagres da natureza, uma planta brotando, uma flor abrindo suas pétalas, a leveza do verde nas asas do vento em tardes amenas de outono.
Tive vontade de vê-la, visitá-la. Liguei para combinarmos uma data, horário. Ela concordou com um encontro à tarde. Mas só depois das quatro. Antes disso estaria ocupadíssima. Trabalhando? Não. No salão de beleza cuidando do cabelo e unhas. Encarei, nesse momento, meu lugar, tempo e espaço nesse mundo. Lembrei da minha idade. A que eu tenho de fato. A que eu acho que tenho. A que gostaria de ter. E me vi, radiante de felicidade observando os oitenta e oito anos da minha amiga Gabriela.
Percebo a vida de forma estranha. Meus passos ecoam no mundo e me trazem de volta, como um eco, palavras que ficaram lá atrás. Sonhos decapitados. Desejos mutilados. Sinto uma imensa tristeza ao perceber que meu mundo esteve caído e muito pálido. Me sinto só. Não lamento. Não há mais o que lamentar. Meu tempo é curto. As paisagens passam muito rapidamente. Minhas lágrimas estão sempre atualizadas. Meu sorriso, não sei. Estou imensamente triste. Abaladamente triste. Tenho vontade de rever, mas tenho um cansaço muito grande. Às vezes acho que perdi uma grande oportunidade. Engraçado... Outras vezes acho que estou ganhando o jogo. Ando cansada, com sono... Tenho sentimentos em vários dialetos. Continuo com vontade de sentar no chão e olhar a vida com paixão. Perceber o movimento louco do mundo, como as pessoas se estranham, enfim, beber cada gota de vida. Ando com saudades de mim. Essa é a verdade. Onde ando eu?Preciso viver a legitimidade dos meus desejos. Preciso libertar essa coisa que está presa dentro de mim. Não sei o que é. Mas está me arranhando por dentro. Preciso. Tem que ser agora. Não tenho mais tempo.
Ontem foi dia de festa. Minha amiga irmã Belvedere Bruno lançou o seu primeiro livro solo: Vinho Branco Safra Especial de Contos e Crônicas. Nos conhecemos há muitos anos e essa veia artística sempre esteve presente em todos os seus gestos. Lembro de Bel ganhando concurso de melhor fantasia numa festa em Niterói onde reinava absoluta com sua irreverência e estilo único. As férias em Friburgo tinham mais sabor quando ela estava por perto. Engraçada, fazia piada de tudo e de todos. Sempre tinha uma história pra contar de alguém ou de alguma situação estranha que tenha vivido. Os namorados eram homenageados através de sátiras que sempre aumentavam nosso repertório de risadas. Embora tenha dado uma pausa, Bel sempre foi uma escritora. Ontem fiquei muito feliz por fazer parte do seu círculo de amigos e poder brindar a produção literária dessa minha irmã. O livro é delicioso, faz a gente sonhar, sorrir, chorar, viver através de histórias do cotidiano, da vida. Uma grande contadora de histórias. Leve, simples, lírica, simplesmente Bel...
quarta-feira, 9 de junho de 2010
Letra e música nem sempre andam juntas. Há versos incabíveis em certas frases melódicas bem como há sons resistente a palavras. Assim também, muitas vezes, é a nossa vidinha. Insistimos em escrever canções completas com letra e música quando, na verdade, precisamos de pausas. Difícil perceber a necessidade de mudanças de compasso, permitir momentos só de harmonia. Ou só de poesia. Mas na nossa neurose construída e bem treinada nos obrigamos a colocar letra e música em tudo. Precisamos explicar, entender, expor e inflar o nosso ego nessa produção desvairade de sentidos. Melhor seria escutar de verdade pra poder perceber onde cabe, ou não, uma letra. Onde é necessário mudar o ritmo, sentir a pausa.... Ouvir a música.
Mesenti tão estranha! Desci as escadas cambaleando, perdendo as referências. Na semana passada Marilu me chegou com a novidade: -Amiga, essa é muito boa. Lê além e através das mãos. Lê a alma. Parece que essa mulher andou me seguindo durante meses. Você tem que ir lá amiga! Quer o endereço?
A sala recendia a incenso ordinário e mofo. A mesa redonda vestia uma toalha de renda amarelada pelo tempo. Um rádio antigo com um jarro de flores de plástico engorduradas chiava tons sertanejos. Na parede cor de rosaalguns quadros com fotos antigas cercados por gravuras coloridas de santos: São Jorge, Santo Antônio, Santa Teresinha, Cosme e Damião... Todos ali bem juntinhos sacramentando leituras de mão a trinta e cinco reais o quarto de hora.
Dona Zizinha me mandou sentar. Gorducha, baixinha, cabelos branco amarelados como a toalha, tinha um sorriso espaçado pelos poucos dentes que lhe restavam. Pegou suavemente minhas mãos e começou a falar da minha vida. Ouvi tudo calada.
Que alívio sair dali. Eu tão bem casada e adaptada ouvir esse monte de besteiras. Dizer que preciso me libertar, frequentar a vida... Imagine. Nem estou presa a nada. Gosto bem da minha vida. Sempre vou ao cinema com Olavo. Embora ele não goste do mesmo estilo que eu, até cede vez por outra. Teatro ele não gosta. Sempre dorme. Trabalha muito.Não posso exigir esse sacrifício também.
Depois ela vem dizer que abandonei a música. Ora essa, estou sempre ouvindo a JB. Tá certo que não abri mais o piano. Ah, nem tenho tempo e idade pra isso. É um móvel tão bonito! Ficou enfeitando a sala. Além do mais Olavo não gosta de barulho quando está assistindo TV. Essa mulher não sabe de nada. Dizer que eu devia voltar a pintar pra abrir meus caminhos. Que a minha evolução espiritual depende da abertura desse triângulo da arte que vê na minha mão. Pintar pra que? Pra quem? Olavo mesmo diz:...se ainda desse algum dinheiro...
Tenho é que cuidar da minha saúde: A bronquite alérgica, a enxaqueca semanal, a coluna... Esse sim é um triângulo que preciso observar.
Marilu que me desculpe mas vou procurar uma boa cartomante. Daquelas que falam verdades. Tenho um endereço quentíssimo.
Fim de semana gelado em Friburgo. Encontro de afetos, abraços, risadas, calor de amizade aquecendo corações. Fiz uma visitinha ao meu passado caminhando pelas ruas da Filó. Morei naquele bairro até os dezesseis anos de idade. Constatei, com tristeza, o abandono das casas e dos jardins. Falta verde, faltam vozes e gritos de crianças pelas ruas. Os buracos das calçadas parecem ainda guardar murmúrios e segredos do meu tempo. Andava de patins, bicicleta, trocava gibi, dançava quadrilha, tocava acordeon, brincava de roda , de pique esconde, queimado, soldado ladrão... Lembro do desejo de ter uma calça Lee (a que desbotava) ser resolvido com água sanitária na minha velha farwest. As meninas, com inveja fizeram o mesmo e no domingo fomos de bicicleta até o Vale dos Pinheiros esbanjando alegria e conversa boba pela estrada. A parada na biquinha era de lei. Beber aquela água nascente, fresquinha e lavar os rostos viçosos de esperança e ingenuidade. Revivi alinhavos de um tapete de retalhos que me sustenta até hoje.
O tempo voa. É comum dizer essa frase quando se vive algo muito bom, como uma viagem interessante, ou mesmo a constatação de um filho que cresceu e se firmou na vida. Enfim, a questão do tempo é relativa. Hoje, por exemplo a tarde voou. Recebi a visita de uma amiga e nos envolvemos de tal forma na conversa que não sentimos a passagem desse grande amigo. Até falamos dele. É. Grande amigo sim. Se não fosse ele nossas emoções ficariam congeladas e sentidas da mesma forma todos os dias. Ele nos ajuda a diluir a dor das perdas permitindo novas construções e descobertas de sentidos outros. É a única certeza que temos nos momentos difíceis. E como diz Caetano: "És um senhor tão bonito..."